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quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Cultura e literatura muito além da Pólis

Algumas semanas atrás eu acessei o site da Estante Virtual e resolvi encomendar o livro História, Literatura, Ficção do renomado estudioso da literatura Luiz Costa Lima. Fiz o pedido a um vendedor, cadastrado no site, chamado Valmir de Souza, que, prontamente, enviou o exemplar. Após receber o livro e depois de alguns e-mails, Valmir de Souza mencionou que estava se desfazendo de alguns livros que não usava mais e que atuava no Ensino Superior, tendo feito doutorado na Usp e publicado o livro Cultura e literatura: diálogos.

O livro me foi enviado pelo autor e creio que nada mais justo do que externar aqui as impressões gerais que me causaram. Para começar, venho dialogando também com alguns nomes que preenchem as referências bibliográficas da obra, como Walter Benjamin e Roger Chartier, para pensar essa questão da noção da cultura como um conceito despojado dos atavios de opulência e presunção que lhe são depositados pelas elites administrativas. A questão é que esses autores, juntamente, também com o nome do crítico literário Alfredo Bosi, nos ajudam a refletir sobre a cultura como um terreno movediço, no qual acontecem conflitos margeados por relações de força complexas. Entra em cena, assim, uma arena de estudos bem profícua quando se encara as disputas pela legitimação da ordem vigente e o direito a memória daqueles que tem suas formas artísticas de expressão silenciadas pelas políticas oficiais e oficiosas.

Mais do que uma conotação ligada ao puro deleite estético de uma classe social que encontra tempo para admirar galerias de arte e livrarias, a ideia de cultura plural e aberta perpassa uma discussão de ordem ética. Esses embates teóricos são desenvolvidos por Valmir de Souza de forma muito honesta. No entreato de suas análises, aparece o cenário urbano de Guarulhos na grande São Paulo: palco privilegiado para o estudo das tensões geradas por embates culturais, fermentados no seio de uma sociedade plural e diversificada, que, muitas vezes, marginaliza e marginalizou expressões artísticas e literárias ligados aos anseios e manifestações da criatividade popular, como o cordel, o repente, o coco, rap, hip hop etc. Em detrimento dessas manifestações, as elites administrativas favorecem a disseminação de eventos voltados para a chamada cultura erudita como se esse fato fosse suficiente para proporcionar a redenção dos habitantes da metrópole. Em relação a essa ilusão, basta lembrar, como os adeptos e protagonistas dessas manifestações são tratados, por vezes, com uma "crueldade simbólica difícil de se detectar" através de discursos oficiais e midiáticos.

Embora se volte para a discussão de projetos culturais voltados para a inclusão social e engajados com uma visão de arte multifacetada que foram promovidos em São Paulo, como o Pátria Amada Esquartejada e o Congresso Internacional de História, os textos de Valmir de Souza possuem uma abrangência nacional. Basta lembrar, como sugere o autor, no capítulo Violência e resistência na literatura brasileira, que "a violência é inimiga da liberdade com autonomia". Inclui-se aí a ideia de violência simbólica e também política. Em um contexto contemporâneo, margeado pela retórica da exclusão e da propagação dos preconceitos mais sórdidos, bem como da apologia dos comportamentos intolerantes e homogenistas, a obra Cultura e literatura: diálogos merece ser lida como um pontapé inicial para debates que respeitem a diversidade étnica, cultural e regional brasileira.

Referência:

SOUZA, Valmir de. Cultura e literatura: diálogos. São Paulo: Ed. do Autor, 2008.




quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Uma visão sobre ensino e aprendizagem no Brasil atual



Não costumo divulgar textos de terceiros por este blog. Recebi por e-mail uma espécie de libelo sobre a educação no Brasil bastante ferino e com algumas considerações, algumas margeadas por uma retórica saudosista e conservadora, bastante indignadas. A questão é que, exageros e tradicionalismos a parte, eu concordo em grande parte com as inquietações que motivaram o Igor Wildmann a escrever esse texto, mas não com todo o conteúdo de suas ideias. Por isso, segue abaixo as reflexões desse professor sobre os atuais quadros de ensino e aprendizagem brasileiros:

Foi uma tragédia fartamente anunciada. Em milhares de casos, desrespeito. Em outros tantos, escárnio. Em Belo Horizonte, um estudante processa a escola e o professor que lhe deu notas baixas, alegando que teve danos morais ao ter que virar noites estudando para a prova subsequente. (Notem bem: o alegado “dano moral” do estudante foi ter que... estudar!). A coisa não fica apenas por aí. Pelo Brasil afora, ameaças constantes. Ainda neste ano, uma professora brutalmente espancada por um aluno. O ápice desta escalada macabra não poderia ser outro. O professor Kássio Vinícius Castro Gomes pagou com sua vida, com seu futuro, com o futuro de sua esposa e filhas, com as lágrimas eternas de sua mãe, pela irresponsabilidade que há muito vem tomando conta dos ambientes escolares. Há uma lógica perversa por trás dessa asquerosa escalada. A promoção do desrespeito aos valores, ao bom senso, às regras de bem viver e à autoridade foi elevada a método de ensino e imperativo de convivência supostamente democrática. No início, foi o maio de 68, em Paris: gritava-se nas ruas que “era proibido proibir”. Depois, a geração do “não bate, que traumatiza”. A coisa continuou: “Não reprove, que atrapalha”. Não dê provas difíceis, pois “temos que respeitar o perfil dos nossos alunos”. Aliás, “prova não prova nada”. Deixe o aluno “construir seu conhecimento.” Não vamos avaliar o aluno. Pensando bem, “é o aluno que vai avaliar o professor”. Afinal de contas, ele está pagando... E como a estupidez humana não tem limite, a avacalhação geral epidêmica, travestida de “novo paradigma” (Irc!), prosseguiu a todo vapor, em vários setores: “o bandido é vítima da sociedade”, “temos que mudar ‘tudo isso que está aí’; “mais importante que ter conhecimento é ser ‘crítico’.” Claro que a intelectualidade rasa de pedagogos de panfleto e burocratas carreiristas ganhou um imenso impulso com a mercantilização desabrida do ensino: agora, o discurso anti-disciplina é anabolizado pela lógica doentia e desonesta da paparicação ao aluno–cliente... Estamos criando gerações em que uma parcela considerável de nossos cidadãos é composta de adultos mimados, despreparados para os problemas, decepções e desafios da vida, incapazes de lidar com conflitos e, pior, dotados de uma delirante certeza de que “o mundo lhes deve algo”.

Um desses jovens, revoltado com suas notas baixas, cravou uma faca com dezoito centímetros de lâmina, bem no coração de um professor. Tirou-lhe tudo o que tinha e tudo o que poderia vir a ter, sentir, amar.

Ao assassino, corretamente , deverão ser concedidos todos os direitos que a lei prevê: o direito ao tratamento humano, o direito à ampla defesa, o direito de não ser condenado em pena maior do que a prevista em lei. Tudo isso, e muito mais, fará parte do devido processo legal, que se iniciará com a denúncia, a ser apresentada pelo Ministério Público. A acusação penal ao autor do homicídio covarde virá do promotor de justiça. Mas, com a licença devida ao célebre texto de Emile Zola, EU ACUSO tantos outros que estão por trás do cabo da faca:

EU ACUSO a pedagogia ideologizada, que pretende relativizar tudo e todos, equiparando certo ao errado e vice-versa;

EU ACUSO os pseudo-intelectuais de panfleto, que romantizam a “revolta dos oprimidos” e justificam a violência por parte daqueles que se sentem vítimas;

EU ACUSO os burocratas da educação e suas cartilhas do politicamente correto, que impedem a escola de constar faltas graves no histórico escolar, mesmo de alunos criminosos, deixando-os livres para tumultuar e cometer crimes em outras escolas;

EU ACUSO a hipocrisia de exigir professores com mestrado e doutorado, muitos dos quais, no dia a dia, serão pressionados a dar provas bem tranqüilas, provas de mentirinha, para “adequar a avaliação ao perfil dos alunos”;

EU ACUSO a mercantilização cretina do ensino, a venda de diplomas e títulos sem o mínimo de interesse e de responsabilidade com o conteúdo e formação dos alunos, bem como de suas futuras missões na sociedade;

EU ACUSO a lógica doentia e hipócrita do aluno-cliente, cada vez menos exigido e cada vez mais paparicado e enganado, o qual finge que não sabe que, para a escola que lhe paparica, seu boleto hoje vale muito mais do que seu sucesso e sua felicidade amanhã;

EU ACUSO a hipocrisia das escolas que jamais reprovam seus alunos, as quais formam analfabetos funcionais só para maquiar estatísticas do IDH e dizer ao mundo que o número de alunos com segundograu completo cresceu “tantos por cento”;

EU ACUSO os “cabeças–boas” que acham e ensinam que disciplina é “careta”, que respeito às normas é coisa de velho decrépito,

EU ACUSO os métodos de avaliação de professores, que se tornaram templos de vendilhões, nos quais votos são comprados e vendidos em troca de piadinhas, sorrisos e notas fáceis;

EU ACUSO os alunos que protestam contra a impunidade dos políticos, mas gabam-se de colar nas provas, assim como ACUSO os professores que, vendo tais alunos colarem, não têm coragem de aplicar a devida punição.

EU VEEMENTEMENTE ACUSO os diretores e coordenadores que impedem os professores de punir os alunos que colam, ou pretendem que os professores sejam “promoters” de seus cursos;

EU ACUSO os diretores e coordenadores que toleram condutas desrespeitosas de alunos contra professores e funcionários, pois sua omissão quanto aos pequenos incidentes é diretamente responsável pela ocorrência dos incidentes maiores;

Uma multidão de filhos tiranos que se tornam alunos-clientes, serão despejados na vida como adultos eternamente infantilizados e totalmente despreparados, tanto tecnicamente para o exercício da profissão, quanto pessoalmente para os conflitos, desafios e decepções do dia a dia. Ensimesmados em seus delírios de perseguição ou de grandeza, estes jovens mostram cada vez menos preparo na delicada e essencial arte que é lidar com aquele ser complexo e imprevisível que podemos chamar de “o outro”. A infantilização eterna cria a seguinte e horrenda lógica, hoje na cabeça de muitas crianças em corpo de adulto: “Se eu tiro nota baixa, a culpa é do professor. Se não tenho dinheiro, a culpa é do patrão. Se me drogo, a culpa é dos meus pais. Se furto, roubo, mato, a culpa é do sistema. Eu, sou apenas uma vítima. Uma eterna vítima. O opressor é você, que trabalha, paga suas contas em dia e vive sua vida. Minhas coisas não saíram como eu queria. Estou com muita raiva. Quando eu era criança, eu batia os pés no chão. Mas agora, fisicamente, eu cresci. Portanto, você pode ser o próximo.” Qualquer um de nós pode ser o próximo, por qualquer motivo. Em qualquer lugar, dentro ou fora das escolas. A facada ignóbil no professor Kássio dói no peito de todos nós. Que a sua morte não seja em vão. É hora de repensarmos a educação brasileira e abrirmos mão dos modismos e invencionices. A melhor “nova cultura de paz” que podemos adotar nas escolas e universidades é fazermos as pazes com os bons e velhos conceitos de seriedade, responsabilidade, disciplina e estudo de verdade.

Prof. Igor Pantuzza Wildmann.

Doutor em Direito.