A figura do
intelectual independente do poder doutrinário da Igreja e dos interesses
aristocráticos é uma invenção iluminista. O fato é que diferentemente da
América do Norte e da Inglaterra, lugares onde os intelectuais estavam
vinculados a famílias tradicionais e proprietárias de escravos, na França
pré-revolucionária surgem os chamados “mendigos da pena”, que se colocaram em
polêmica contra a nobreza e solidários em relação às insatisfações sentidas
pelas camadas populares. Foi, portanto,
nessa França prestes a eclodir em um evento sanguinário que surgiu o debate
sobre o papel do intelectual e o engajamento diante das demandas políticas de
uma época, porém, em outro patamar, também temos a crítica e a denúncia do
radicalismo revolucionário que foram produzidas pelos intelectuais
desenraizados.
Esse levantamento
histórico sobre o raio de atuação limitada, porém sempre aguardada, dos
intelectuais foi conduzido de forma magistral por Domenico Losurdo no ensaio
“Os intelectuais e o conflito: responsabilidade e consciência histórica”,
escrito em 1997, e publicado no Brasil em 1999, na coletânea Intelectuais e política: a moralidade do
compromisso. Existem, portanto, intelectuais que legitimam ideologicamente
projetos políticos que podem desencadear crises sociais. Isso por que, como é
possível perceber, a cultura política ocidental é uma cultura alicerçada
solidamente na prática da retórica. O próprio Voltaire, mesmo ao falar sobre
tolerância em um dos seus textos mais famosos, atacou com violência o fanatismo
promovido pelas religiões. Os discursos de Voltaire que postulam a religião
como uma manifestação da ignorância humana e um entrave para a liberdade estão
presentes na legitimação contemporânea em torno da nova cruzada ocidental
contra o Oriente. Se Voltaire pode servir como uma luva para justificar a
limpeza étnica de árabes, Locke também forneceu uma possante legitimação
retórica da escravidão nas colônias europeias ao longo do imperialismo.
Porém, não é papel do estudioso da consciência
histórica assumir ares de um juiz que distribui condenações para réus que
defenderam ideais que hoje são tidos como hediondos pelo menos entre as pessoas
minimamente sensatas. Entre uma teoria situada em um momento histórico preciso
e a prática de um crime existe uma diferença gritante. Se o fascismo cometeu
crimes que há muito tempo a cultura humanista italiana condenava, é porque essa
cultura não possuía quase nenhuma influência sobre a vida do homem comum.
A consciência histórica da catástrofe humana
que representou a Segunda Guerra leva Losurdo (1999, p. 193) a reafirmar tanto o
pecado da indiferença do intelectual entrincheirado em sua torre de marfim como
a inegável parcela de culpa dos legitimadores das teorias sobre o extermínio de
massa. Assim, no contemporâneo, “somos novamente reconduzidos a denúncia da
engenharia social e da filosofia da história”. O intelectual, para Losurdo,
compartilha das mesmas obrigações morais que o homem comum em relação à
necessária atuação política que devemos desenvolver no terreno movediço da
cidadania. A covardia ou a cumplicidade diante do crime é uma postura absurda e
que contribui para reforçar o desprezo do trabalhador operário pelo homem de
letras. Assim, no mínimo, o intelectual deve nutrir uma postura atenta em relação
às ilusões político-sociais provocadas por algumas teorias de seu tempo, pois:
(...) a
consciência histórica é a condição preliminar para que o intelectual no
exercício da atividade intelectual, como sujeito moral diante de conflitos e
responsabilidades inevitáveis e que, ao avaliar o passado, não se vê fora da
corrente ininterrupta das responsabilidades. Esse assumir obrigatório da
responsabilidade não fundará nenhuma republique
des lettres, não eliminará os conflitos e as contradições que constituem a
história e que dilaceram os intelectuais, exatamente como os políticos e como
todos os mortais. E sobre uns como sobre outros se exercerá e continuará a
exercer o juízo histórico das futuras gerações. (LOSURDO, 1999 , p. 196)
Referências:
LOSURDO,
Domenico. Os intelectuais e o conflito: responsabilidade e consciência
histórica. In: BASTOS, Elide Rugai & RÊGO, Walkiria Leão (orgs.). Intelectuais e política: a moralidade do
compromisso. São Paulo: Olho d`Água, 1999.