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terça-feira, 13 de março de 2012

Um íntimo devaneio com Kafka

Não é uma exclusividade minha ler Kafka e ter a sensação de que estou lendo sobre minha própria pessoa. Se um escritor conseguiu atingir esse efeito por meio de sua arte, com certeza se tornará um imortal. Atualmente, estou com a biografia romanceada Kafka e a marca do corvo, de Jeanette Rozsas e os 28 desaforismos, do próprio escritor tchéco, publicados pela Editora da Ufsc. Sim, mais que nunca, como nos ensinou Lima Barreto, o destino da literatura é irmanar as pessoas através da imensa dor que a condição humana impõe.

Jeanette Rozsas capta e narra com muita sensibilidade as agruras enfrentadas pelo escritor judeu ao longo do convívio com o pai autoritário e capitalista; sua amizade com Max Brod; as reuniões com os amigos nos cafés de Praga para discutirem filosofia e literatura e as angústias amorosas enfrentandas pelo sensível e esquálido escritor. A imagem pintada por Rozsas de Kafka é a de um ser humano, como qualquer outro... terrivelmente sensível, por razões intelectuais e étnicas, em um mundo de mercadores grosseiros e preconceituoso contra as minorias. Uma sociedade, por assim dizer, pré-fascista e nazista. É esse o universo que compõe o cerne das narrativas de Kafka sobre o sofrimento humano.

Em um dos seus desaforismos, Kafka (2010, p. 27) assim lança a seguinte reflexão: "seria algo desesperador, se caminhasses numa planície, com a agradável sensação de estar a avançar, quando na verdade retrocedias. Como porém escalavas uma encosta abrupta, bastante inclinada, conforme por ti mesmo vista de baixo, a causa do retrocesso bem poderia ser devido a disposição do terreno. Não deves desesperar".


O que posso dizer é que, atualmente, na esteira das narrativas de Kafka, a gente aprende mais através da dor do que pelo amor e eu aprendi a viver um dia de cada vez, sem dúvida, sem me preocupar tanto com essa mísera moeda de favores polutivos que se tornou a palavra "liberdade".


Referências:

ROSZAS, Jeanette. Kafka e a marca do corvo. São Paulo: Geração Editorial, 2009.

KAFKA, franz. 28 desaforismos. Tradução de Silveira de Souza. Florianópolis: Editora da UFSC, 2010.



segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Paulo Bezerra, orgulho da Paraíba.


Paulo Bezerra é o responsável pela díficil realizada diretamente do russo para o português das obras de Dostoiévski. Até então, os leitores brasileiros tinham de se contentar com a tradução feita por Rosário Fusco da obra Crime e castigo, porém do francês para nosso idioma. segundo o próprio Paulo Bezerra (In: DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 07), no prefácio da edição do citado romance, publicado pela Editora 34, a tradução da tradução feita por Fusco é elegante, porém "saiu fortemente marcada por muitos elementos característicos da língua e da literatura francesa e do próprio modo pelo qual os franceses costumam traduzir obras de autores russos".

Em termos metodológicos, Paulo Bezerra buscou e conseguiu ser fiel ao texto em original de Dostoiévski na medida em que primou até por conservar o ritmo da fala dos personagens, as falas aparentemente desprovidas de sentido - que já foram consideradas como imperfeições narrativas - que aparecem no romance e a linguagem coloquial e acessível do escritor russo. Diferentemente do culto as belas letras presente na literatura francesa, Dostoiévski buscou, de forma consciente, romper com essas formas dominantes da literatura de seu tempo.

Em uma entrevista ao Jô Soares, Paulo Bezerra compartilhou conosco a história do caminho que trilhou para se tornar um acadêmico reconhecido nacionalmente. Paulo foi um, dentre tantos outros paraibanos (entre os quais, os próprios pais do Jô Soares), que deixaram o torrão natal em busca de melhores oportunidade em São Paulo. Se envolvendo com o movimento operário em plena ditadura militar, refugiou-se na Rússia onde aprendeu o idioma falado naquelas estepes - como conta de forma bem humorada - da melhor maneira possível através de uma namorada nativa. Ter convivido com o russo escrito e a língua falada no cotidiano pelo país fez toda a diferença para que esse homem de letras se tornasse a principal referência brasileira no tocante a compreensão de Dostoiévski.

Nos depoimentos que achei nas redes sociais, a simplicidade do professor Paulo Bezerra é sempre citada pelos seus alunos com admiração. Também é justamente essa a impressão que me ficou sobre sua conduta quando assisti sua entrevista. As falas de Paulo Bezerra transbordam um humanismo generoso, ressignificado e atual. Éis a grande lição que esse mestre nos transmite sem fazer alarde: as leituras e os estudos que realizamos nessa busca pelo significado dos dramas e alegrias que preenchem a existência humana precisam servir, pelo menos, para fundamentar uma postura ética pessoal pautada no respeito ao outro. Tantas leituras e citações de nomes de autores estrangeiros de nada servem se o sujeito não sabe cumprimentar ou oferecer um voto de cordialidade ao seu próximo. Assim, já integrando a nada pequena lista de paraibanos ilustres que figuram no rol dos grandes vultos nacionais, Paulo Bezerra, natural da cidade de Pedra Lavrada - onde passei bons momentos de minha infância - é o emblema vivo de que por essas áridas paragens existem inúmeras mentes férteis.


Referência:

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo. Tradução e prefácio de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2001.


Entrevista ao Jô Soares:


segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A crítica e os muitos Prousts

Nessas férias aproveitei para redescobrir meu próprio lugar. Após uma temporada no Cariri paraibano, tão celebrado nas composições de Luiz Gonzaga, me desloquei para o litoral de João Pessoa. Não existem palavras para descrever o que é reencontrar os amigos, os realmente grandes, após um longo tempo ausente. Tudo muda, certamente... as cidades se oxigenam, se modificam, crescem como verdadeiros organismos, mas as permanências também são visíveis e são elas que nos fazem sentir a sensação do reencontro com o tempo perdido, longe de onde pertencemos. Após reencontrar o Recife-PE e suas lindas e mornas praias, viajei para Natal-RN e também pude me deslumbrar com as maravilhas naturais que preenchem a paisagem desta capital acolhedora e festiva. Mas foi, sobretudo, o encontro com meu primeiro sobrinho, uma criança de 8 meses, que me fez deixar o óculos escuro e o protetor solar de lado para sentar-me na frente de um monitor e de um teclado novamente.

Em se tratando de infância, o escritor que se tornou uma referência aclamada por vários estudiosos da cultura foi o francês Marcel Proust. Por aqui, assistindo uma troca ou outra de fraldas, estava a divagar se a euforia e comoção que uma criança provoca em um adulto também não é causada por outro tipo de reencontro: um reencontro com nossa própria infância perdida e esquecida. São infinitas as possibilidades de interpretação para os textos de Proust e irei elencar e comentar por aqui aqueles que considero mais relevantes.

Por exemplo, o historiador italiano Carlo Ginzburg, na obra Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância, tece algumas considerações magistrais sobre o papel do estranhamento ao longo dos três volumes de Em busca do tempo perdido. Segundo o autor, desde a Antiguidade, com o romano Marco Aurélio, até o século XIX com um Proust, Tolstoi ou um Dostoiévski, por exemplo, consolidou-se essa tradição literária que está embasada na transfiguração do olhar do literato para o de um animal ou de uma criança. Assim, se valendo desse recurso estético, os escritores puderam se valer de um tom jocoso ou de uma composição narrativa aparentemente absurda para denunciar algumas injustiças que sempre permearam as relações entre abastados e populares, bem como as excentricidades dos comportamentos ditos civilizados.

Já o filósofo francês Paul Ricoeur dedicou um capítulo inteiro na sua densa discussão sobre Tempo e narrativa para compreender os jogos com o tempo elaborados por Proust. As reflexões de Ricoeur sobre Em busca do tempo perdido estão inseridas em uma outra de aspecto mais amplo que condiz com a principal tese levantada por este estudioso da linguagem: basicamente, para Ricoeur, a ficção conserva uma relação íntima para com o mundo prático e vivido, bem como descobre e cria outros mundos. Em síntese, o tempo da linguagem ou criado pela linguagem não pode ser arbitrariamente separado do tempo vivido. Sendo assim, Proust jogou com o tempo nos romances que compõem a trilogia Em busca do tempo perdido ao se valer de uma técnica que encaixava, no enredo, variações anacrônicas do tempo. Essa forma de configurar a narrativa construiu uma sensação de que o tempo vivido e perdido pode ser reencontrado e narrado.

Em O castelo de Axel, publicado inicialmente em 1931, o norte-americano Edmund Wilson destacou os temas da literatura simbolista que estão presentes na trilogia de Proust. Assim, a melancolia, o perfil psicológico dos personagens, os comportamentos obsessivos, os lugares e as emoções conflitantes narradas por Proust constituem a face decadentista de Em busca do tempo perdido. O próprio Proust, segundo Wilson, era um verdadeiro obcecado pela projeção de uma imagem pessoal que correspondesse com aquela do gênio incompreendido, tão conhecida entre aqueles que gostam de artes em geral. Muitas vezes, quando saia do seu isolamento, Proust aparecia nos salões parisienses com aspecto doentio e desleixado. Outro ponto importante para Wilson é a ascendência judaica do escritor, que, com certeza, merece ser ressaltada.

O brilhante pensador judeu-alemão Walter Benjamin teceu uma breve, porém profunda, reflexão sobre Proust na obra Magia e Técnica, arte e política. No ensaio "A imagem de Proust", Benjamin se refere a Proust como um escritor que conseguiu dominar a árdua técnica do uso das metáforas na composição de um texto literário. Metáfora e ironia se mesclam em Proust para fundamentarem uma severa crítica aos valores ostentados pela burguesia parisiense do final do século XIX. Por último, Deleuze, em Proust e os signos, nos convida a abandonar a convicção de que a memória é o principal elemento que fundamenta a unidade dos 3 volumes de Em busca do tempo perdido. Para este filósofo francês pós-estruturalista, o tema da memória, para Proust, é apenas uma faceta da história de um aprendizado: o aprendizado de um homem de letras em relação a difícil arte de dominar os signos que fazem parte da linguagem.

Desde o literato que jogou com os tempos por meio de sua narrativa até aquele que se dedicou a tarefa de decifrar os signos que fazem parte dos comportamentos, condutas, ações e pensamentos, Proust continua dotado de uma imensa atualidade e sua escrita, assim como suas interpretações do mundo e das lembranças, é aberta, plural e multifacetada. Resta ao leitor assimilar as lições desses grandes pensadores do século XX citados aqui e elaborar, ele próprio, sua íntima leitura desse clássico da literatura ocidental que se tornou Em busca do tempo perdido e, quem sabe, ressignificar sua própria concepção de infância, memória ou de aprendizado.



Referências:


BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. 2ª. ed. Tradução de Antônio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.


WILSON, Edmund. O castelo de Axel: estudo sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.


RICOEUR, Paul. Os jogos com o tempo. In: Tempo e narrativa. Campinas: SP: Papirus, 1995.


quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Entrevista sobre Lima Barreto

Segue abaixo o vídeo com a entrevista que dei para a TV Itararé, filial da TV Cultura em Campina Grande, sobre o teor do livro Uma oura face da Belle Époque carioca: o cotidiano nos subúrbios nas crônicas de Lima Barreto. Agradeço, mais uma vez, a Itararé pelo espaço cedido e a acolhida.

Aproveito para desejar aos frequentadores desse espaço, um feliz natal e próspero 2012. Pessoalmente, eu só posso dizer que não existe alegria maior para mim do que estar de férias na Paraíba, desfrutando do calor humano e dessa rica cultura regional, que faz, sem dúvida, o Brasil cada vez mais brasileiro.


sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Lançamento do livro Uma outra face da Belle Époque carioca na UFCG


Gostaria de convidar os (as) historiadores (as) e estudiosos da literatura interessados no tema, bem como os discentes e docentes que atuam na UEPB, na UFCG, UVA e UFPB e que estarão em Campina Grande - onde mal posso esperar para pisar novamente no solo da cidade e encher meus pulmões com sua atmosfera acolhedora, cosmopolita e agradável - para o lançamento do livro Uma outra face da Belle Époque carioca: o cotidiano nos subúrbios nas crônicas de Lima Barreto, editado pela Multifoco. Na ocasião, estarei proferindo a conferência "Charles Dickens e a literatura fotográfica", que versará sobre as dimensões retóricas das imagens e pictóricas e ilustrativas da literatura.


Local: Auditório da Biblioteca da Universidade Federal de Campina Grande
Horário: das 20:00 ás 21:30 hs.
Data: 07 de dezembro de 2011 (quarta-feira)

terça-feira, 8 de novembro de 2011

A universalidade de Macunaíma


A obra Macunaíma foi escrita em seis dias de trabalho, em dezembro de 1926 e publicada em 1928. Macunaíma logo se transformou no livro mais importante do nacionalismo modernista brasileiro. Os amigos de Mário de Andrade, ao lerem o manuscrito, tiveram a impressão fulminante de estarem segurando uma obra-prima.

Para Gilda de Mello e Sousa (1979, p. 11), Macunaíma foi escrita a partir de um método que entrecruzou uma rede de textos pré-existentes ligados as tradições orais, eruditas, populares, europeias e brasileiras.

A estética que atravessa toda a narrativa de Mário de Andrade remete a uma apropriação realizada pelo escritor da análise do fenômeno musical e do processo criador do populário. Por meio da mistura entre tendências presentes tanto na arte internacional, quanto na arte brasileira, Andrade mergulhou no universo da música e da imaginação coletiva, bem como em questões levantadas pela etnografia, folclore e psicanálise. Macunaíma, desta forma, foi escrito a partir de uma série de reflexões teóricas sobre a criação popular e a música brasileira.

Mário de Andrade publicou o livro Danças dramáticas do Brasil e o Ensaio sobre a música brasileira. Em Danças dramáticas do Brasil afirma que a música popular é um documento vivo de nossa mistura étnica. Para Andrade, a música popular do Brasil brotou da mistura de elementos rítmicos de Portugal, da África e da Espanha com as expressões musicais brasileiras. Nas palavras do próprio escritor, essa bricolagem entre o erudito e o populário encontra seu ápice na mistura entre teatro dramático, dança e música profana que ocorre na versão pernambucana do Bumba-meu-Boi.

Macunaíma é composto, portanto, da unção híbrida de peças como anedotas tradicionais da História do Brasil; incidentes curiosos presenciados pelo escritor; transcrições textuais de etnógrafos, de cronistas coloniais e frases célebres de grandes vultos da história com um processo retórico que tinha a intenção de criar “sonoridades curiosas” e “cômicas”. Portanto, para Mello e Sousa (1979, p. 22), “o exemplo mais perfeito deste processo parasitário de compor, típico do populário, seria encontrado por Mário de Andrade no improviso do cantador nordestino”.

Os cantadores de embolada e repentes compõem se valendo do seguinte método: cantam uma melodia que não é sua e que a decoram com falhas de memória. Em segundo, tecem uma série de variações subjetivas sobre o conteúdo original da melodia de modo que essa música original se torne fácil e vulgar. Por último, começam a fantasiar objetivamente sobre a melodia para variar e ampliar seus significados. Assim, os cantadores de coco e repente não são gênios iluminados do improviso, mas profissionais que se preparam longamente para a prova, armazenando na cabeça uma quantidade extensa e variada de conhecimentos, recolhidos nas fontes mais diversas: no Novo e Velho Testamento, na Arte da Gramática, em manuais de Álgebra, dicionários de Fábulas, livros de Mitologias e de Astrologia, em romances de literatura de cordel. Desse modo, a elaboração de Macunaíma encontra-se ligada à profunda experiência musical de Mário de Andrade, baseada em pesquisas sobre a circularidade entre cultura erudita e popular.

Mário de Andrade construiu uma verdadeira utopia geográfica presente em trechos como o episódio no qual Macunaíma sobrevoa o Brasil em um aeroplano e descortina, do alto, o mapa do país. Assim, esse quadro revela um desejo profundo de Mário de Andrade em buscar um denominador comum que estabelecesse um nexo entre o universo urbano do Sul/Sudeste e a cultura agrária e barroca do Norte/Nordeste.

Assim como Mário de Andrade analisou as analogias entre a música europeia e as manifestações rítmicas populares, indígenas e africanas, a obra Macunaíma possui um núcleo central firmemente europeu embora em tensão constante com o uso de expressões coloquiais, indígenas, afros e regionais que tentam emprestar a narrativa um aspecto selvagem. Ora, é inegável que Macunaíma remete também a uma retomada satírica do romance de cavalaria - a lá Dom Quixote, de Cervantes - e a tradição literária de Rabelais, na Idade Média, na qual o grotesco, a paródia e o detalhe obsceno gestavam uma visão carnavalizada do mundo, ocorrendo uma vitória simbólica do riso sobre a seriedade, o medo e o sofrimento.


Referências:

ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Rio de Janeiro: Agir, 2007.

MELLO E SOUSA, Gilda de. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. São Paulo: Duas Cidades, 1979.


sábado, 22 de outubro de 2011

As flores do mal: um livro sujo?

Não é novidade afirmar que o escritor francês Charles Baudelaire foi um daqueles poucos notáveis que ao manter uma relação visceral com sua época produziu uma literatura margeada pela autenticidade. Ao romper com a poesia convencional e com a alta subjetividade romântica, Baudelaire acreditava que a arte era fruto de múltiplas trocas entre a paisagem, o artista e o consumidor.

Apesar de possuir uma origem abastada, o escritor teve uma relação conturbada com a mãe e o padrasto: o tenente-coronel Jacques Aupick, “homem decente e civilizado", conforme podemos deduzir e que preocupou-se com o destino dos bens da família dada a inclinação do jovem Baudelaire para participar de noites de bebedeiras e frequentar bordéis parisienses, no melhor estilo decadent. Em termos de preferências políticas, apesar de ser republicano e participar das barricadas em 1848, Baudelaire irá desencantar-se - com toda razão - com o liberalismo e ser perseguido por causas dos poemas que reuniu sob o título de As flores do mal pela censura de Napoleão III.

O fato do escritor ter ido parar com As Flores do Mal no banco dos réus teria sido causado por uma preocupação oficial em relação ao teor erótico dos poemas ou ao teor político? O historiador Peter Gay, em Marginais por profissão, reforça a interpretação do procurador da República em relação aos poemas do escritor, ao analisar apenas as estrofes mais obscenas dos versos. A postura que eu acredito ser a mais sensata é de que As flores do mal possuíam sérias implicações políticas não apenas travestidas de erotismo. Segundo Dolf Oehler (1999, p. 274-50, em O velho mundo desce aos infernos, durante o julgamento de Baudelaire, “quer se trate de generosidade, estupidez ou cálculo, foram totalmente ignoradas as implicações de crítica social dessa lírica”.


Quem era o hipócrita leitor que Baudelaire chamou de irmão no primeiro poema de As flores do mal? Trata-se de uma fina ironia destinada ao público que consumia poesia na Paris oitocentista: os burgueses. Para Oehler (1999, p. 293), “o satanismo de Baudelaire é sobretudo uma resposta ao discurso contemporâneo da consciência limpa, ao cinismo inconsciente, a mentira cândida do homem de bem, a quem ele combate (...)”. O satânico Baudelaire estava falando do mal não a partir da perversão sexual, mas a partir de “observações da psicologia individual” e de “experiências históricas”.

Mas também para este curioso leitor, uma das maiores lições deixadas por Baudelaire para nosso século brotou justamente da sua entrega aos ditos paraísos artificiais como o haxixe e o ópio. Esses agentes atuavam como gatilhos que conseguiam entrelaçar o onírico com a vigília, isto é: os sonhos com o real. Assim, o delírio e a divagação, para Baudelaire, também eram fontes de saber. Um saber pautado não na racionalidade, mas no próprio dilaceramento da racionalidade. Um saber noturno e não iluminista, cujas premissas acabaram fascinando um dos maiores filósofos do século XX: o alemão Walter Benjamin.


Referências:

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Edição biligue. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

GAY, Peter. Marginais por profissão. In: Modernismo: o fascínio da heresia de Baudelaire a Beckett. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

OEHLER, Dolf. O velho mundo desce aos infernos: auto-análise da modernidade após o trauma de junho de 1848 em Paris. Tradução de José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.