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segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A crítica e os muitos Prousts

Nessas férias aproveitei para redescobrir meu próprio lugar. Após uma temporada no Cariri paraibano, tão celebrado nas composições de Luiz Gonzaga, me desloquei para o litoral de João Pessoa. Não existem palavras para descrever o que é reencontrar os amigos, os realmente grandes, após um longo tempo ausente. Tudo muda, certamente... as cidades se oxigenam, se modificam, crescem como verdadeiros organismos, mas as permanências também são visíveis e são elas que nos fazem sentir a sensação do reencontro com o tempo perdido, longe de onde pertencemos. Após reencontrar o Recife-PE e suas lindas e mornas praias, viajei para Natal-RN e também pude me deslumbrar com as maravilhas naturais que preenchem a paisagem desta capital acolhedora e festiva. Mas foi, sobretudo, o encontro com meu primeiro sobrinho, uma criança de 8 meses, que me fez deixar o óculos escuro e o protetor solar de lado para sentar-me na frente de um monitor e de um teclado novamente.

Em se tratando de infância, o escritor que se tornou uma referência aclamada por vários estudiosos da cultura foi o francês Marcel Proust. Por aqui, assistindo uma troca ou outra de fraldas, estava a divagar se a euforia e comoção que uma criança provoca em um adulto também não é causada por outro tipo de reencontro: um reencontro com nossa própria infância perdida e esquecida. São infinitas as possibilidades de interpretação para os textos de Proust e irei elencar e comentar por aqui aqueles que considero mais relevantes.

Por exemplo, o historiador italiano Carlo Ginzburg, na obra Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância, tece algumas considerações magistrais sobre o papel do estranhamento ao longo dos três volumes de Em busca do tempo perdido. Segundo o autor, desde a Antiguidade, com o romano Marco Aurélio, até o século XIX com um Proust, Tolstoi ou um Dostoiévski, por exemplo, consolidou-se essa tradição literária que está embasada na transfiguração do olhar do literato para o de um animal ou de uma criança. Assim, se valendo desse recurso estético, os escritores puderam se valer de um tom jocoso ou de uma composição narrativa aparentemente absurda para denunciar algumas injustiças que sempre permearam as relações entre abastados e populares, bem como as excentricidades dos comportamentos ditos civilizados.

Já o filósofo francês Paul Ricoeur dedicou um capítulo inteiro na sua densa discussão sobre Tempo e narrativa para compreender os jogos com o tempo elaborados por Proust. As reflexões de Ricoeur sobre Em busca do tempo perdido estão inseridas em uma outra de aspecto mais amplo que condiz com a principal tese levantada por este estudioso da linguagem: basicamente, para Ricoeur, a ficção conserva uma relação íntima para com o mundo prático e vivido, bem como descobre e cria outros mundos. Em síntese, o tempo da linguagem ou criado pela linguagem não pode ser arbitrariamente separado do tempo vivido. Sendo assim, Proust jogou com o tempo nos romances que compõem a trilogia Em busca do tempo perdido ao se valer de uma técnica que encaixava, no enredo, variações anacrônicas do tempo. Essa forma de configurar a narrativa construiu uma sensação de que o tempo vivido e perdido pode ser reencontrado e narrado.

Em O castelo de Axel, publicado inicialmente em 1931, o norte-americano Edmund Wilson destacou os temas da literatura simbolista que estão presentes na trilogia de Proust. Assim, a melancolia, o perfil psicológico dos personagens, os comportamentos obsessivos, os lugares e as emoções conflitantes narradas por Proust constituem a face decadentista de Em busca do tempo perdido. O próprio Proust, segundo Wilson, era um verdadeiro obcecado pela projeção de uma imagem pessoal que correspondesse com aquela do gênio incompreendido, tão conhecida entre aqueles que gostam de artes em geral. Muitas vezes, quando saia do seu isolamento, Proust aparecia nos salões parisienses com aspecto doentio e desleixado. Outro ponto importante para Wilson é a ascendência judaica do escritor, que, com certeza, merece ser ressaltada.

O brilhante pensador judeu-alemão Walter Benjamin teceu uma breve, porém profunda, reflexão sobre Proust na obra Magia e Técnica, arte e política. No ensaio "A imagem de Proust", Benjamin se refere a Proust como um escritor que conseguiu dominar a árdua técnica do uso das metáforas na composição de um texto literário. Metáfora e ironia se mesclam em Proust para fundamentarem uma severa crítica aos valores ostentados pela burguesia parisiense do final do século XIX. Por último, Deleuze, em Proust e os signos, nos convida a abandonar a convicção de que a memória é o principal elemento que fundamenta a unidade dos 3 volumes de Em busca do tempo perdido. Para este filósofo francês pós-estruturalista, o tema da memória, para Proust, é apenas uma faceta da história de um aprendizado: o aprendizado de um homem de letras em relação a difícil arte de dominar os signos que fazem parte da linguagem.

Desde o literato que jogou com os tempos por meio de sua narrativa até aquele que se dedicou a tarefa de decifrar os signos que fazem parte dos comportamentos, condutas, ações e pensamentos, Proust continua dotado de uma imensa atualidade e sua escrita, assim como suas interpretações do mundo e das lembranças, é aberta, plural e multifacetada. Resta ao leitor assimilar as lições desses grandes pensadores do século XX citados aqui e elaborar, ele próprio, sua íntima leitura desse clássico da literatura ocidental que se tornou Em busca do tempo perdido e, quem sabe, ressignificar sua própria concepção de infância, memória ou de aprendizado.



Referências:


BENJAMIN, Walter. A imagem de Proust. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. 2ª. ed. Tradução de Antônio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense, 2003.

GINZBURG, Carlo. Olhos de madeira: nove reflexões sobre a distância. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.


WILSON, Edmund. O castelo de Axel: estudo sobre a literatura imaginativa de 1870 a 1930. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.


RICOEUR, Paul. Os jogos com o tempo. In: Tempo e narrativa. Campinas: SP: Papirus, 1995.


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