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sexta-feira, 31 de agosto de 2012

O signo da decadência


O poeta Edgar Allan Poe foi o grande nome do simbolismo – a corrente estética que mais sondou o mal e o horror no limiar do capitalismo financeiro – e representa de forma mais veemente essa tendência geral do decadentismo em negar a visão mecanicista do mundo e a concepção de que o homem é um animal social. Porém, esse direcionamento da arte para os recônditos mais angustiantes do ser acabou tornando, muitas vezes, a comunicação entre poeta e leitor impossível.

Na dissertação A vida vertiginosa dos signos: recepção do idioleto decadista na belle époque tropical, Marcus Salgado abordou bem a importância da decadência enquanto um super-signo da literatura do final do século XIX. O autor, de forma geral, propõe uma análise da recepção desse estilo na literatura de João do Rio, Elysio de Carvalho e Medeiros e Albuquerque. Esses três escritores brasileiros foram influenciados diretamente pela escrita de Huysmans, Lorrain e Wilde. A literatura da Belle Époque tropical manteve, portanto, um constante diálogo com a tradição cultural do fin-de-siécle. Segundo Marcus Salgado, a teoria da decadência foi construída no plano ficcional a partir da obra Às avessas (1884), de Huysmans, ao borrar as fronteiras entre ensaio e romance e no plano teórico-crítico, quando o italiano Mário Praz, o português Seabra Pereira e o brasileiro Alexandre Eulálio passaram a refletir sobre o idioleto decadista.
A consolidação da psicanálise e da psiquiatria como saberes instituídos, no século XIX, despertou a atenção dos escritores por temas como a histeria, as manias e a hipnose. No pensamento científico de Césare Lombroso, médico obcecado pelos traços visíveis da delinquência ou da genialidade na aparência de seus pacientes, a noção de decadência e degeneração serão evocadas por uma ótica completamente eugenista. Os decadentistas irão construir situações narrativas e personagens marcados pela demonomania, paranoia, catalepsia, histero-epilepsia, erotomania, misoginia, sodomia (então tratada como problema clínico), alucinações visuais, olfativas e acústicas, sonambulismo, sadismo, fetichismo, pigmalionismo, necrofilia, estupro e pedofilia. Assim, essa literatura também se presta ao papel de um imenso guia clínico de patologias e de vazões aos delírios inconscientes de seus autores.

Um dos grandes méritos de A vida vertiginosa dos signos foi problematizar romances poucos conhecidos de autores como João do Rio, Elysio de Carvalho e Medeiros e Albuquerque, mesmo entre os estudiosos da cultura na bela época carioca. Porém, Salgado acaba reforçando uma leitura ainda muito romântica desses decadentistas brasileiros. É importante salientar que esses escritores estão muito longe de serem escritores malditos, pois todos conseguiram almejaram e conseguiram adentrar nos salões  oficiais, oficiosos e dourados da ABL. Eu acho que o Salgado deveria ter ampliado seu telescópio para os outsiders da Belle Époque. Por exemplo, falar em decadentismo sem citar o conto Dentes negros, cabelos azuis; O Cemitério dos Vivos e o Diário de Hospício de Lima Barreto é algo, no mínimo, estranho.

Referências:
SALGADO, Marcus. A vida vertiginosa dos signos: recepção do idioleto decadista na belle époque tropical. Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Um passeio literário com Orham Pamuk


Alguns livros deveriam ser começados a serem lidos pelo Epílogo, ao invés do Prefácio. Foi justamente com esse intuito, acredito, que a edição brasileira das conferências de Orham Pamuk, em Harvard, reunidas sob o título de O romancista ingênuo e o sentimental, não possui nenhum texto introdutório. De imediato, o leitor depara-se com o ensaio "O que nossa mente faz quando lemos um romance". Na verdade, o prêmio Nobel de literatura de 2006, professor de teoria literária e romancista responsável por uma ampla ressignificação das identidades orientais, nos fala por meio de uma entonação pessoal e intimista. Para elaborar seus conceitos sobre a figura do romancista ingênuo e de sentimental, Pamuk retoma o mote deixado por um famoso ensaio de Schiller sobre a técnica de escrever ficção literária.

O pensamento de Pamuk é amplamente imagético e ensaístico. Basicamente, o romancista ingênuo é aquele que busca escrever dando pouca importância aos ritmos métricos e gramaticais e aos ditames da composição estética. O romancista ingênuo tenta escrever dando vazão aos seus impulsos, pouco se importando com o burilamento de um estilo. Já o romancista sentimental tem uma postura reflexiva. Busca submeter a arte há uma série de procedimentos técnicos e normativos. O cabedal de escritores convocados por Pamuk para ilustrarem suas reflexões é amplo, variando de Tolstói, Dostoiévski, Proust, Borges até Ortega y Gasset. Uma postura que eu diria que me incomodou um pouco é justamente o fato do autor insistir em abordar os cânones da literatura ocidental. Porém, como nenhuma escolha que fazemos está livre de orientações pessoais, Pamuk (2011, p. 104) remete aos escritores que mais lhe influenciaram em seu próprio ofício e não deixa de levar em conta que também lhe "agrada imaginar um autor de um romance como um indivíduo infeliz e incompreendido. Nesse momento, acho que sou a única pessoa que entende os recantos negligenciados desse romance negligenciado".

A questão é que para esse escritor turco, autor do maravilhoso O museu da inocência, os romancistas que se travestem de uma extrema pedância que os levam, inclusive, a desdenhar da figura do leitor são ainda depositários do mito do artista modernista e incompreendido. Postura que está em discrepância com as atuais demandas políticas. Se o sujeito que escreve se afasta da pluralidade do mundo vivido e quer obter reconhecimento falando sobre seu mundo subjetivo no qual não existe espaço para o reconhecimento da alteridade, possivelmente não terá êxito como literato.

Particularmente, achei fascinante quando Pamuk relata seu processo de criação do romance Neve. Ao transitar pelas áreas mais pobres da Turquia, na cidade de Kars, o autor deparou-se com uma paisagem repleta de suborno e miséria, "com rancores e ressentimentos que geralmente levam à violência" (Pamuk, 2011, p. 108). Todos os simpáticos moradores da cidade com quem conversou e gravou entrevistas, relatam histórias terríveis sobre a cidade e os dramas que nela eram vividos, porém sempre pedia com um sincero sorriso, ao final das conversas, que o escritor buscasse abordar também os aspectos bons daquela comunidade. Então, a ingenuidade faz com que o escritor supere o dilema "entre escrever a verdade e o desejo de ser amado" (Pamuk, 2011, p. 108) para pensar na elaboração do artesanato literário como algo muito maior do que criar um museu destinado somente para sua própria felicidade.

O trecho é revelador. Ao confessar que fez entrevistas, quase uma pesquisa de campo, Pamuk nos revela seu lado sentimental-reflexivo. A questão é que, seja para os aspirantes ao mundo das letras ou aos arrojados historiadores da literatura, a maior lição de Pamuk é de que devemos buscar pelo equilíbrio entre nossa face ingênua e a sentimental. Em ambas tendências, podemos nos deparar com grandes obras de arte. Porém, as que parecem realmente serem marcantes, são os romances que conseguem esse díficil e complexo equilíbrio. Assim, ao forçar o leitor a pensar por meio imagens mentais, o bom romancista, canonizado ou não, é aquele que consegue, ao criar um enigma narrativo oscilante entre a ingenuidade e a reflexividade, consiga unir a imaginação e a matéria - esferas da atuação humana separadas pelo mundo da razão e do monocentrismo.


Referências:

PAMUK, Orham. O romancista ingênuo e o sentimental. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.