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quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Um passeio literário com Orham Pamuk


Alguns livros deveriam ser começados a serem lidos pelo Epílogo, ao invés do Prefácio. Foi justamente com esse intuito, acredito, que a edição brasileira das conferências de Orham Pamuk, em Harvard, reunidas sob o título de O romancista ingênuo e o sentimental, não possui nenhum texto introdutório. De imediato, o leitor depara-se com o ensaio "O que nossa mente faz quando lemos um romance". Na verdade, o prêmio Nobel de literatura de 2006, professor de teoria literária e romancista responsável por uma ampla ressignificação das identidades orientais, nos fala por meio de uma entonação pessoal e intimista. Para elaborar seus conceitos sobre a figura do romancista ingênuo e de sentimental, Pamuk retoma o mote deixado por um famoso ensaio de Schiller sobre a técnica de escrever ficção literária.

O pensamento de Pamuk é amplamente imagético e ensaístico. Basicamente, o romancista ingênuo é aquele que busca escrever dando pouca importância aos ritmos métricos e gramaticais e aos ditames da composição estética. O romancista ingênuo tenta escrever dando vazão aos seus impulsos, pouco se importando com o burilamento de um estilo. Já o romancista sentimental tem uma postura reflexiva. Busca submeter a arte há uma série de procedimentos técnicos e normativos. O cabedal de escritores convocados por Pamuk para ilustrarem suas reflexões é amplo, variando de Tolstói, Dostoiévski, Proust, Borges até Ortega y Gasset. Uma postura que eu diria que me incomodou um pouco é justamente o fato do autor insistir em abordar os cânones da literatura ocidental. Porém, como nenhuma escolha que fazemos está livre de orientações pessoais, Pamuk (2011, p. 104) remete aos escritores que mais lhe influenciaram em seu próprio ofício e não deixa de levar em conta que também lhe "agrada imaginar um autor de um romance como um indivíduo infeliz e incompreendido. Nesse momento, acho que sou a única pessoa que entende os recantos negligenciados desse romance negligenciado".

A questão é que para esse escritor turco, autor do maravilhoso O museu da inocência, os romancistas que se travestem de uma extrema pedância que os levam, inclusive, a desdenhar da figura do leitor são ainda depositários do mito do artista modernista e incompreendido. Postura que está em discrepância com as atuais demandas políticas. Se o sujeito que escreve se afasta da pluralidade do mundo vivido e quer obter reconhecimento falando sobre seu mundo subjetivo no qual não existe espaço para o reconhecimento da alteridade, possivelmente não terá êxito como literato.

Particularmente, achei fascinante quando Pamuk relata seu processo de criação do romance Neve. Ao transitar pelas áreas mais pobres da Turquia, na cidade de Kars, o autor deparou-se com uma paisagem repleta de suborno e miséria, "com rancores e ressentimentos que geralmente levam à violência" (Pamuk, 2011, p. 108). Todos os simpáticos moradores da cidade com quem conversou e gravou entrevistas, relatam histórias terríveis sobre a cidade e os dramas que nela eram vividos, porém sempre pedia com um sincero sorriso, ao final das conversas, que o escritor buscasse abordar também os aspectos bons daquela comunidade. Então, a ingenuidade faz com que o escritor supere o dilema "entre escrever a verdade e o desejo de ser amado" (Pamuk, 2011, p. 108) para pensar na elaboração do artesanato literário como algo muito maior do que criar um museu destinado somente para sua própria felicidade.

O trecho é revelador. Ao confessar que fez entrevistas, quase uma pesquisa de campo, Pamuk nos revela seu lado sentimental-reflexivo. A questão é que, seja para os aspirantes ao mundo das letras ou aos arrojados historiadores da literatura, a maior lição de Pamuk é de que devemos buscar pelo equilíbrio entre nossa face ingênua e a sentimental. Em ambas tendências, podemos nos deparar com grandes obras de arte. Porém, as que parecem realmente serem marcantes, são os romances que conseguem esse díficil e complexo equilíbrio. Assim, ao forçar o leitor a pensar por meio imagens mentais, o bom romancista, canonizado ou não, é aquele que consegue, ao criar um enigma narrativo oscilante entre a ingenuidade e a reflexividade, consiga unir a imaginação e a matéria - esferas da atuação humana separadas pelo mundo da razão e do monocentrismo.


Referências:

PAMUK, Orham. O romancista ingênuo e o sentimental. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.


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