O poeta Edgar Allan Poe foi o grande nome do simbolismo – a corrente estética que mais sondou o mal e o horror no limiar do capitalismo financeiro – e representa de forma mais veemente essa tendência geral do decadentismo em negar a visão mecanicista do mundo e a concepção de que o homem é um animal social. Porém, esse direcionamento da arte para os recônditos mais angustiantes do ser acabou tornando, muitas vezes, a comunicação entre poeta e leitor impossível.
Na dissertação A vida vertiginosa dos signos: recepção do idioleto decadista na belle époque tropical, Marcus Salgado abordou bem a importância da decadência enquanto um super-signo da literatura do final do século XIX. O autor, de forma geral, propõe uma análise da recepção desse estilo na literatura de João do Rio, Elysio de Carvalho e Medeiros e Albuquerque. Esses três escritores brasileiros foram influenciados diretamente pela escrita de Huysmans, Lorrain e Wilde. A literatura da Belle Époque tropical manteve, portanto, um constante diálogo com a tradição cultural do fin-de-siécle. Segundo Marcus Salgado, a teoria da decadência foi construída no plano ficcional a partir da obra Às avessas (1884), de Huysmans, ao borrar as fronteiras entre ensaio e romance e no plano teórico-crítico, quando o italiano Mário Praz, o português Seabra Pereira e o brasileiro Alexandre Eulálio passaram a refletir sobre o idioleto decadista.
A consolidação da psicanálise e da psiquiatria como saberes instituídos, no século XIX, despertou a atenção dos escritores por temas como a histeria, as manias e a hipnose. No pensamento científico de Césare Lombroso, médico obcecado pelos traços visíveis da delinquência ou da genialidade na aparência de seus pacientes, a noção de decadência e degeneração serão evocadas por uma ótica completamente eugenista. Os decadentistas irão construir situações narrativas e personagens marcados pela demonomania, paranoia, catalepsia, histero-epilepsia, erotomania, misoginia, sodomia (então tratada como problema clínico), alucinações visuais, olfativas e acústicas, sonambulismo, sadismo, fetichismo, pigmalionismo, necrofilia, estupro e pedofilia. Assim, essa literatura também se presta ao papel de um imenso guia clínico de patologias e de vazões aos delírios inconscientes de seus autores.
Um dos grandes méritos de A vida vertiginosa dos signos foi problematizar romances poucos conhecidos de autores como João do Rio, Elysio de Carvalho e Medeiros e Albuquerque, mesmo entre os estudiosos da cultura na bela época carioca. Porém, Salgado acaba reforçando uma leitura ainda muito romântica desses decadentistas brasileiros. É importante salientar que esses escritores estão muito longe de serem escritores malditos, pois todos conseguiram almejaram e conseguiram adentrar nos salões oficiais, oficiosos e dourados da ABL. Eu acho que o Salgado deveria ter ampliado seu telescópio para os outsiders da Belle Époque. Por exemplo, falar em decadentismo sem citar o conto Dentes negros, cabelos azuis; O Cemitério dos Vivos e o Diário de Hospício de Lima Barreto é algo, no mínimo, estranho.
Referências:
SALGADO, Marcus. A vida vertiginosa dos signos: recepção do idioleto decadista na belle époque tropical. Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas) Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
Meu caro, agradeço sua resenha da dissertação. Parte da dissertação foi publicada em livro, que gostaria de fazer chegar até vc (escreva-me, por gentileza, em marcussalgado@gmail.com). Quanto a Lima Barreto, é evidente que, embora seja um escritor estupendo e sua vertiginosa obra se constitua inegável testemunho humano e sociológico, falta-lhe certo aristocratismo característico do decadentismo (fosse ele uma pose ou uma defesa ideológica). O mesmo vale em relação ao dandismo (os decadentistas o herdaram tanto de Baudelaire quanto de Barbey d´Aurevilly, ainda vivo no fin de siècle e em contato com os principais decadentistas, que,como Jean Lorrain, idolatravam-no) e à "écriture artiste". Em matéria de outsiders da belle époque, estaria mais próximo do decadentismo o B. Lopes. Havia também a questão do álcool - a que os decadentistas franceses, com exceção do absinto, não enfatizavam tanto quanto o éter, a morfina e o ópio.
ResponderExcluirEm tempo: não se esqueça que o "outsider" Lima Barreto tentou, e mais de uma vez, ingressar nos salões da Academia Brasileira de Letras... Portanto, seu texto também reforça uma leitura ainda muito romântica sobre Lima Barreto (autor que, embora vc o considere ousider, é, da belle époque, dos que mais a crítica escreveu a respeito, de forma que hoje se encontra muito mais canonizado do que em sua época). É preciso atentar para o reducionismo e o esquematismo ideológicos quando se aborda as obras da "belle époque", caso contrário o feitiço vira contra o feiticeiro...
ResponderExcluirÉ inevitável que nossas leituras não deixem de ser intoxicadas mais por nossos afetos, creio, do que, propriamente, por esquematismos ideológicos. Sobre o ar aristocrático, é verdade. Estou realizando uma leitura comparada entre Às avessas e Vida e Morte de Gonzaga de Sá e apesar dos protagonistas dos romances serem depositários do pessimismo de Schopenhauer, a empatia de Gonzaga de Sá pelo seu mordomo é o que distancia Gonzaga de Sá do ar de bon vivant falido de Des Essents. Sobre as duas tentativas de Lima Barreto tentar adentrar na ABL, talvez o silenciamento em torno das suas candidaturas tenha muito mais a dizer do que a ambição comum a todo homem de letras pelo reconhecimento. Hoje, Lima é um cânone. Bem mais lido e debatido que Elysio de Carvalho e Medeiros e Albuquerque, é verdade. No momento, busco mapear a função de temas macabros como a morte, a violência, erotismo e pessimismo em seu pensamento, para além do Lima pobre e excluído. Parece que uma obra múltipla e fragmentada como a dele, apesar de ser muito estudada, ainda é prenhe de muitos significados. Abraços!
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