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sábado, 22 de outubro de 2011

As flores do mal: um livro sujo?

Não é novidade afirmar que o escritor francês Charles Baudelaire foi um daqueles poucos notáveis que ao manter uma relação visceral com sua época produziu uma literatura margeada pela autenticidade. Ao romper com a poesia convencional e com a alta subjetividade romântica, Baudelaire acreditava que a arte era fruto de múltiplas trocas entre a paisagem, o artista e o consumidor.

Apesar de possuir uma origem abastada, o escritor teve uma relação conturbada com a mãe e o padrasto: o tenente-coronel Jacques Aupick, “homem decente e civilizado", conforme podemos deduzir e que preocupou-se com o destino dos bens da família dada a inclinação do jovem Baudelaire para participar de noites de bebedeiras e frequentar bordéis parisienses, no melhor estilo decadent. Em termos de preferências políticas, apesar de ser republicano e participar das barricadas em 1848, Baudelaire irá desencantar-se - com toda razão - com o liberalismo e ser perseguido por causas dos poemas que reuniu sob o título de As flores do mal pela censura de Napoleão III.

O fato do escritor ter ido parar com As Flores do Mal no banco dos réus teria sido causado por uma preocupação oficial em relação ao teor erótico dos poemas ou ao teor político? O historiador Peter Gay, em Marginais por profissão, reforça a interpretação do procurador da República em relação aos poemas do escritor, ao analisar apenas as estrofes mais obscenas dos versos. A postura que eu acredito ser a mais sensata é de que As flores do mal possuíam sérias implicações políticas não apenas travestidas de erotismo. Segundo Dolf Oehler (1999, p. 274-50, em O velho mundo desce aos infernos, durante o julgamento de Baudelaire, “quer se trate de generosidade, estupidez ou cálculo, foram totalmente ignoradas as implicações de crítica social dessa lírica”.


Quem era o hipócrita leitor que Baudelaire chamou de irmão no primeiro poema de As flores do mal? Trata-se de uma fina ironia destinada ao público que consumia poesia na Paris oitocentista: os burgueses. Para Oehler (1999, p. 293), “o satanismo de Baudelaire é sobretudo uma resposta ao discurso contemporâneo da consciência limpa, ao cinismo inconsciente, a mentira cândida do homem de bem, a quem ele combate (...)”. O satânico Baudelaire estava falando do mal não a partir da perversão sexual, mas a partir de “observações da psicologia individual” e de “experiências históricas”.

Mas também para este curioso leitor, uma das maiores lições deixadas por Baudelaire para nosso século brotou justamente da sua entrega aos ditos paraísos artificiais como o haxixe e o ópio. Esses agentes atuavam como gatilhos que conseguiam entrelaçar o onírico com a vigília, isto é: os sonhos com o real. Assim, o delírio e a divagação, para Baudelaire, também eram fontes de saber. Um saber pautado não na racionalidade, mas no próprio dilaceramento da racionalidade. Um saber noturno e não iluminista, cujas premissas acabaram fascinando um dos maiores filósofos do século XX: o alemão Walter Benjamin.


Referências:

BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira. Edição biligue. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

GAY, Peter. Marginais por profissão. In: Modernismo: o fascínio da heresia de Baudelaire a Beckett. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

OEHLER, Dolf. O velho mundo desce aos infernos: auto-análise da modernidade após o trauma de junho de 1848 em Paris. Tradução de José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.




2 comentários:

  1. Excelente texto!

    Gostei da passagem que explica a postura satânica como crítica aos costumes pequeno-burgueses-judaico-cristãos; como um dilaceramento das ficções românticas.

    Sobre a questão do uso de alucinógenos, citei em nota de rodapé, na dissertação, o livro "As portas da percepção", de Huxley, demonstrando as limitações do cérebro humano frente à definição de estímulos, impressões e imagens provenientes da realidade.

    É sempre muito bom, e muito maduro, tecermos a crítica à racionalidade, ao método seguro e hermético, às definições e afirmações fechadas. Quando um artista, ou um homem de ciência admite o erro, a digressão, o improvável, o impossível, a divagação, a deriva, o ópio, assume para si a consciência da finitude do seu intelecto, da sua capacidade de linguagem, e essa é a melhor resposta que podemos dar a esse lado negro da instituição Academia, que é o seu caráter burocrático, derivado das ciências positivas e que transforma o saber em reflexos de egos e pútridas vaidades. Só mesmo com muito ópio e haxixe pra derrubar tais paradigmas antitéticos.

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  2. É justamente isso que não estou mais suportando: estudantes e professores que ainda não compreenderam que existe uma significativa distância entre a importância que atribuem a sí mesmos e a importância que realmente possuem nas suas respectivas áreas. Bom, mas falar sobre a esquizofrenia acadêmica já daria outro post, rsrs. Abraços!

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